Você pediu que eu escrevesse sobre a maldade. Foi a primeira vez que uma pessoa me pediu isso. Você foi corajoso porque falar sobre a maldade é falar sobre nós mesmos. A maldade é algo que mora dentro de nós, à espera do momento certo para se apossar do nosso corpo. Ao pedir que eu falasse sobre a maldade você me pediu que o ajudasse a entender o lado escuro de você mesmo.
Para a gente entender a maldade é preciso entender, antes, os dois poderes de que somos feitos. Somos feitos de uma mistura de amor e poder. Amor é um sentimento que nos liga a determinadas coisas, e vai desde o simples gostar até o estar apaixonado. O amor quer abraçar, ficar perto, proteger. Amo meu cachorrinho: quero brincar com ele, tenho saudade dele. Se ele morrer eu vou chorar. Gosto da minha casa. Dói muito – dá raiva – se alguém picha de preto o muro que tinha justo sido pintado de branco. Gosto muito de uma pessoa: pode ser o pai, a mãe, o avô, a namorada. Por causa desse sentimento fico triste vendo que aquela pessoa está triste. O amor faz isso: coloca o outro dentro da gente. O que o outro sente, a gente sente também. Um amigo meu, pedreiro, senhor João, a primeira coisa que fazia quando me visitava em minha casa era salvar, com um peneira, as abelhas que estavam morrendo afogadas na piscina. Ele sofria com as abelhas.
Por isso, muitas pessoas são vegetarianas. Elas não suportam pensar na dor por que passam os bichos para que nós nos lambuzemos com a carne deles. Uma pessoa muito querida, que não é vegetariana, não consegue comer frango ao molho pardo. O molho pardo desse frango se faz com sangue – e ela se lembra de haver visto frangos de pescoço cortado, pendurados num gancho, agonizantes, seu sangue vagarosamente pingando num prato. Agora, sempre que ela vê frango ao molho pardo, ela se lembra do sofrimento daquela ave inocente. Os bichos também sofrem.
O amor nos liga à natureza toda. Eu amo a natureza – os riachos de água limpa, as cachoeiras frias, as matas com suas samambaias, avencas, orquídeas, bananeiras, as borboletas, cigarras, pássaros. Nós humanos, temos olhos deformados – não percebemos a beleza dos seres que são diferentes da gente. Mas todos eles, inclusive os besouros (que alguns chamam de “bisorros”), as rãs, os lagartos, as marias-fedidas, as taturanas, os urubus – todos eles querem viver, sofrem, fazem parte desse nosso mundo e são necessários à sua existência. Todos eles são nossos irmãos – porque todos nós teremos o mesmo fim. Um dia nós voltaremos à terra e, quem sabe, renasceremos como besouro ou galinha…
Aquilo que eu amo eu quero proteger. Proteger o cachorrinho, o muro de casa, a natureza… Às vezes, a gente quer algo anterior ao proteger: a gente crer criar. Você ainda não é pai. Não tem, portanto nenhum filho para proteger. Chegará um dia, entretanto, em que você desejará ter um filho que você ainda não tem. Para isso é preciso que você tenha os poderes de homem – para semear no ventre de uma mulher a semente do filho que você ama, mas ainda não tem. Você deseja ser (ainda não é) administrador de empresa, cozinheiro, médico ou flautista: você ama essas coisas; mas ainda não é. O amor sozinho, não faz milagres. Para ser qualquer dessas coisas você terá que, devargazinho, ir desenvolvendo poderes no seu corpo, poderes que tornarão a forma ou de conhecimentos ou de habilidades.
Quando você tem essas duas coisas juntas o amor e o poder, coisas muito bonitas acontecem. O poder torna possível a existência daquilo que a gente ama: gero um filho, planto um jardim, construo uma casa.
O poder, assim está a serviço da alegria. Pelo poder eu posso contribuir para que o mundo seja melhor. O poder e o amor juntos, estão a serviço da preservação da vida.
Acontece, entretanto que a vida anda devagar. Leva tempo para uma criança ser gerada. Leva tempo para uma árvore crescer. Por vezes, ao plantar uma árvore, a gente sabe que nunca se assentará à sua sombra.
Já a morte anda rápido. Mata-se numa fração de segundo. Basta puxar um gatilho. Ou pisar o bicho. Ou quebrar o ovo. Corta-se uma árvore que levou cem anos para crescer em poucos minutos: se for uma bananeira, basta um golpe de facão.
Você me perguntou sobre a maldade: a maldade é isso – quando as pessoas sentem prazer no ato de destruir, isto é quando as pessoas sentem prazer no exercício puro do poder, sem que esse poder tenha um objetivo de vida. Bondade é o poder usado para a vida. Maldade é o poder usado para a morte.
A adolescência é o momento da vida quando se descobrem as delícias do poder. Criança tem amor mas não tem poder. Ela quer sorvete mas não tem o dinheiro. A mãe segura, põe de castigo, dá palmada. A criança é impotente. Na adolescência o corpo se desenvolve. Fica maior que o corpo da mãe, o corpo do pai. Ganha força. Juntos, então os adolescentes se constituem num exército poderoso. É por isso que os adolescentes gostam de estar juntos: isso lhes dá um sentimento de poder. Há coisas que nunca fariam sozinhos. Mas, em grupo, tudo é permitido. As pessoas mais mansas podem se tornar monstruosas em grupo. No grupo a gente perde o senso da responsabilidade moral.
Como eu já disse, o poder, como fim em sim mesmo, sem um propósito de amor, dá prazer rápido. Quebrar, pichar, arrancar, bater, cortar esmagar, derrubar – todas essas são formas do poder-prazer a serviço da morte. É uma coisa demoníaca.
Por isso, meu amigo, adolescente, quero confessar uma coisa que nunca confessei: “Tenho medo de vocês”. O fascínio que vocês têm pelo poder me assusta. É isso que é maldade: poder sem amor.
Eu queria poder dar para vocês, como herança, o ovo onde moram os meus sonhos, na esperança de que vocês continuassem a chocá-lo, depois da minha partida. Sim, o mundo que eu amo se parece com um ovo: está cheio de vida mas é muito frágil. Dentro dele estão coisas delicadas, fáceis de serem destruídas: plantas, insetos, ninhos, aves, músicas, poemas, memórias, livros, peixes, muros brancos, crianças, velhos, jardins…
Mas eu tenho medo que vocês não resistam à tentação de quebrar o ovo onde eu e o meu mundo moramos. Como é fácil quebrar um ovo! Fácil e irreversível: nunca mais! Assim, por enquanto, o ovo onde moram meus sonhos fica sob a minha guarda. Até encontra os herdeiros que eu espero.
Rubem Alves,
In Correio Popular,
Campinas, 24.II.96
19 julho, 2013 at 14:24
Amo esse texto, ele é lindo demais.
19 julho, 2013 at 18:37
Idem, “M”… obrigado pela visita epifânica! Inté!
27 setembro, 2013 at 15:41
Esse Texto serve de liçao para a vida.
11 abril, 2014 at 13:45
adoro as cartas de rubens alves
26 abril, 2014 at 14:24
Olá.
Achei o texto bem interessante quando fala que temos duas forças: amor e poder. Ao meu ver, só amor não move o mundo e só o poder pode se destruidor. Acredito no equilíbrio das coisas como o texto fala. É preciso amor para encher de bondade nossos ideais e poder para realizá-los. Eu penso poder como força de vontade, como desejo, como algo que te faz lutar por algo e te ajuda a alcançar os objetivos. Acredito que o amor é o sentimento que te faz ter vontade de querer as coisas de maneira pura e sincera. Por isso é tão bom unir amor e poder, pois um vai te dar a bondade do desejo e o outro a garra para alcançar a vitória. Acho que alguns adolescentes se deixam levar pelo poder sozinho e acabam fazendo coisas que podem levar ao arrependimento e outros se prendem só ao amor e ficam no blá blá blá. Acredito que um coração adolescente é muito poderoso porque é intenso nos sentimentos e tem a força da juventude (o poder e o amor). Acho que o problema é quando uma coisa se coloca sobre a outra. Equilíbrio é a chave de tudo. Parabéns a Rubem Alves pelas reflexões.
Um grande abraço.
26 abril, 2014 at 14:29
eu gostei porque ele meio que quer que nós intedamos que a vida não e so maldade destruição poluição devastações etc… ele que que nos comprienda que no mundo taambém e giste amor carinho comprienção com paixão ele mostra que devemos ter com paixão não so com as pessoas mais com os animais também e que devemos de alguma forma nós colocarmos no lugar dos outros ou animais e que o mundo só pode ser melhor se agente tornalo melhor pois como pode agente querer o mundo melhor se agente não faz nada pra que ele se torne um lugar bom ele quer de alguma forma nós mostra também que devemos fazer nossa parte porque so fala não basta devemos fazer algo para torna o mundo um lugar melhor pra que no futuro nossos filhos e netos venha morrar num lugar melhor sem maldade etc… e que também devemos escutar nossos pais mesmo não acreditando muito no que eles nós fala pois eles so querem o nosso bem e querem que agente intenda isso para agente ser um ser humano bom e para passar isso para os nossos filhos também ele nós mostra que o amor junto com o poder nós torna uma pessoa melhor porque do que adianta você ter poder mais não ter amor no coração e se você não tem amor no coração você não ama nem a si proprio quanto mais o proximo sim seramente eu gostei muito deler oque esta escrito porque de alguma forma isso nós faz parar para pensa e refletir
15 setembro, 2014 at 21:59
Parabéns pelo Blog … embora eu nunca faça comentários nos blogs que visito, espero que eles não morram e que continuem alimentando minhas aulas e minha alma!
15 setembro, 2014 at 23:10
Obrigado pelo comentário, Ana. Fico muito feliz com o retorno dos leitores, isso me motiva a compartilhar cada vez mais as leituras que julgo dignas de nota. Até breve!
18 novembro, 2016 at 0:23
Olá Rodrigo ^^ muito ótimo esse texto (carta) hoje fiz um trabalho sobre esta e outras epístolas e resolvi pesquisar ele na internet, vi que desde 2 anos atrás ele vem sido trabalhado. Aproveitei e entrei na home do site (confesso que me me chamou a atenção os png’s de 8 bits no logo da página) músicas, games, rpg’s, quadrinhos, contos, nossa! Amo esse gêneros, faltou só uma postagem sobre os incríveis trabalhos de J. Tolkien e seu mundo fantástico. Muito bom o blog!
19 novembro, 2016 at 19:21
Obrigado pela visita! Fico feliz com esse tipo de retorno em meu blog. O Alforje é uma “válvula de escape”, portanto, não tem pretensão alguma. Escrevo o que dá na telha. Só não escrevi nadica de nada sobre Tolkien porque o velho professor já foi exaustivamente abordado e analisado sob inúmeros prismas pela internet, o que faz com qualquer coisa que eu escreva seja desnecessária e descartável. Por isso, acho melhor abordar outros assuntos. Até breve!